Infância
No meu tempo de criança, a televisão passava filmes repetidos de cowboys, Tarzan, Heidi, Marco e... Gabriela, a mulata de Jorge Amado. Bonecada e aventura à parte, foi a primeira vez que um peito inacessível de mulher me alimentou o imaginário. A horas decentes e indecentes.
Comia de tudo, a más horas e de forma industrial.
Na rua, esmurrava-me com frequência.
Subia a árvores e estatelava-me.
Usava fisgas, apanhava «cabeçudos» e «sardoniscas», como então dizíamos.
Rasguei calças e calções.
Rompi botas e sapatilhas.
Os meus pais, que contavam cada tostão para me pôr a estudar, tremiam de cada vez que me viam chegar. Da escola, ao longo do ano, trazia normalmente três coisas: cara farrusca, uma história mal contada sobre uma camisa rasgada e umas quantas notas tremidas.
Engalfinhava-me com frequência.
Dava e levava. Levava mais do dava.
Comia pó, mas mordia um braço, pelo menos.
A minha avó materna sempre disse que o rapaz não daria em nada. Melhor era pô-lo nos eixos antes que se perdesse de vez. Era rebelde, o ganapo! Não se lhe tinha mão nem freio. Pusesse ele os olhinhos nos primos, quase sempre bem comportados, e talvez ainda se fosse a tempo de fazer dele alguém. Médico, quem sabe?
Em casa dos meus pais e familiares, devorava tudo o que era para ler. As estantes estavam sempre recheadas, havia jornais às catadupas, revistas, banda-desenhada de todo o tipo, com erotismo à mistura (Barbarella, conhecem?) Li Lenine e a Penthouse (não era bem ler...), Tom Sawyer e a Gaiola Aberta.
Havia discussões acaloradas.
Quando penso nesses dias lembro-me sempre da família italiana de Fellini, representada em Amarcord. Nos grandes almoços e jantares com tios, tias, pais e avós, as palavras nunca foram insossas. E os comportamentos eram sempre desviantes, sem a graça de Deus.
Havia cuidados com a criançada, claro, mas o sal e a pimenta da vida nunca faltavam à mesa. Das conversas às anedotas.
Vi entrar e sair pela porta namorados e namoradas dos tios, casamentos, separações e divórcios. Enamoramentos, encantamentos e desilusões.
Quando aos 12, 13 anos, li às escondidas o relatório Shere Hite sobre a sexualidade feminina, um calhamaço de meter respeito, percebi que os homens só podiam ser uns idiotas e as mulheres andavam muito mal frequentadas. Percebi também, finalmente, que «Os Cinco» estavam datados e que o doutor Benjamin Spock teria de esperar.
A minha infância teve ranho, as doenças todas, asneira da grossa e ganga coçada. E, no rabo, uma boa sapatada sempre que a traquinice me punha em perigos e desesperava a família.
Cresci. Simplesmente.
Hoje, quando vejo crianças mantidas em redomas, entregues a falsas palavras mansas, cenários virtuais, prendas de «não me chateies» e paciência de pacotilha, lembro-me da minha infância. Vadia. Perigosíssima, exposta. Capaz de me fazer feliz, até.
Comia de tudo, a más horas e de forma industrial.
Na rua, esmurrava-me com frequência.
Subia a árvores e estatelava-me.
Usava fisgas, apanhava «cabeçudos» e «sardoniscas», como então dizíamos.
Rasguei calças e calções.
Rompi botas e sapatilhas.
Os meus pais, que contavam cada tostão para me pôr a estudar, tremiam de cada vez que me viam chegar. Da escola, ao longo do ano, trazia normalmente três coisas: cara farrusca, uma história mal contada sobre uma camisa rasgada e umas quantas notas tremidas.
Engalfinhava-me com frequência.
Dava e levava. Levava mais do dava.
Comia pó, mas mordia um braço, pelo menos.
A minha avó materna sempre disse que o rapaz não daria em nada. Melhor era pô-lo nos eixos antes que se perdesse de vez. Era rebelde, o ganapo! Não se lhe tinha mão nem freio. Pusesse ele os olhinhos nos primos, quase sempre bem comportados, e talvez ainda se fosse a tempo de fazer dele alguém. Médico, quem sabe?
Em casa dos meus pais e familiares, devorava tudo o que era para ler. As estantes estavam sempre recheadas, havia jornais às catadupas, revistas, banda-desenhada de todo o tipo, com erotismo à mistura (Barbarella, conhecem?) Li Lenine e a Penthouse (não era bem ler...), Tom Sawyer e a Gaiola Aberta.
Havia discussões acaloradas.
Quando penso nesses dias lembro-me sempre da família italiana de Fellini, representada em Amarcord. Nos grandes almoços e jantares com tios, tias, pais e avós, as palavras nunca foram insossas. E os comportamentos eram sempre desviantes, sem a graça de Deus.
Havia cuidados com a criançada, claro, mas o sal e a pimenta da vida nunca faltavam à mesa. Das conversas às anedotas.
Vi entrar e sair pela porta namorados e namoradas dos tios, casamentos, separações e divórcios. Enamoramentos, encantamentos e desilusões.
Quando aos 12, 13 anos, li às escondidas o relatório Shere Hite sobre a sexualidade feminina, um calhamaço de meter respeito, percebi que os homens só podiam ser uns idiotas e as mulheres andavam muito mal frequentadas. Percebi também, finalmente, que «Os Cinco» estavam datados e que o doutor Benjamin Spock teria de esperar.
A minha infância teve ranho, as doenças todas, asneira da grossa e ganga coçada. E, no rabo, uma boa sapatada sempre que a traquinice me punha em perigos e desesperava a família.
Cresci. Simplesmente.
Hoje, quando vejo crianças mantidas em redomas, entregues a falsas palavras mansas, cenários virtuais, prendas de «não me chateies» e paciência de pacotilha, lembro-me da minha infância. Vadia. Perigosíssima, exposta. Capaz de me fazer feliz, até.
In Devida Comédia - Miguel Carvalho - VISÃO