08
Jun 07
Uma destas noites, à hora a que os telejornais já se arrastam, recorri ao Lidl de Xabregas para umas compras de desenrasca. Eu estava de passagem por Lisboa e nem sabia onde ficava Xabregas.

Cá fora, entre carrinhos de mão e uma criança distraída da mão materna, imigrantes. Pelos vistos, confidenciou-me quem sabe, aquele Lidl é especialmente procurado por famílias estrangeiras, ucranianos e africanos de vidas difíceis, talvez miseráveis. Consta que os assaltos são frequentes.
Lá dentro, despachei-me em dez minutos.

Queijo, bolachas, pouco mais. Quem vai ao Lidl tem sempre a sensação de território de nenhures, com produtos encavalitados e apresentados como se tratasse de uma missão humanitária, desesperada. Mas é na poupança com a boa apresentação que os preços são o que são. Dizem.

Já na fila para pagar, uma imagem: ao fundo, uma senhora negra é obrigada pela menina da caixa – e perante os restantes clientes - a abrir a mochila. Explique-se: não foi puxada ao lado nem coisa que o valha por causa de uma desconfiança de momento. Pagou o que levava e, com cara de quem sabe o que a espera, resignada, abriu a mochila e ainda simulou um sorriso. Ninguém estranhou e eu fiquei com a ideia de que aquela mulher podia fazer aquilo todos os dias que acharia normal. Sucederam-se mais uns clientes. Brancos. E nada.

Chegada a minha vez, paguei. E esperei pelo recibo.

Perguntei, então:

- E a mim, não me vai revistar?

A menina da caixa, espantada num primeiro segundo por tão absurda pergunta, ainda hesitou. Mas lá explicou que os procedimentos são para cumprir. Que tanto pede para abrir a mochila de uma senhora negra como a de um cliente como eu, branquinho da silva. Esclareceu que a mim não pedia para revistar nada porque eu levava apenas uma bolsa a tiracolo. E isso, disse, «é pessoal».

Fingi acreditar.

Por fim, lá me elucidou que, em qualquer caso, o cliente pode sempre recusar-se a mostrar os pertences. Só não disse o que se faz quando a pessoa se recusa.

Se há aqui um problema, ele não é o das meninas das caixas, claro. As meninas das caixas são o que são em todos os supermercados deste País: cumprem uma tarefa árdua e não são pagas para pensar.

Ora, os Lidls deste País, ao que parece, não são apenas voluntariamente descuidados na decoração da «montra». Também não investem em segurança mais do que o mínimo necessário. Apesar disso, li há dias num jornal diário que o Lidl é a única cadeia de supermercados que não desiste das queixas contra assaltos, pequenos ou grandes. Li também que os roubos mais frequentes em «supers» e «hipers» são cometidos por gente insuspeita, sobretudo velhinhas bem postas e de cara lavada. Brancas. Quando são apanhadas, desculpam-se quase sempre com a idade, a falta de memória.

Talvez se safem. Quase sempre.

Afinal, não levam mochila nem um estigma na pele.
In Visão - Miguel Carvalho
publicado por SoniaGuerreiro às 11:36
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comentários:
É o pseudoracismo mascarado que ainda existe no nosso país!
daplanicie a 13 de Junho de 2007 às 12:13

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